domingo, 4 de abril de 2010

Retratos de um abandono emocional: Dossier III - I: Se todo o ar do mundo virasse madeira

Gillian estudava a máquina com desejo, podia se ver a lascívia em seus olhos. Era perfeita, todos os seus dados perfeitamente sintetizados, quando ativados deveriam recriar a consciência divina e forçar pela boca dos infiéis que ninguém deveria comer carne na sexta-feira santa.

Mas desde muito ela já apresentara resultados diversos do esperado. Quando o Multivac começou a estudar a questão e apresentou os primeiros prognósticos, que tratavam do exterior da máquina, todos os poucos cientistas que estavam envolvidos no projeto ficaram surpresos com o desenho de uma mulher exuberante. Seria aquela a face de Deus?

E ela era tão diferente das mulheres atuais em contornos... Enquanto as mulheres das classes mais baixas se pareciam com animais escurinhos e peludos, devido a incapacidade de se aplicar a eugenia nas áreas mais "populares" das cidades, e as das classes superiores pareciam robôs pálidos e esquálidos, ela parecia uma mistura do melhor dos dois lados, dando a impressão de ser saborosa como um pêssego.

A Igreja Católica, financiadora da pesquisa, ficou um pouco ressabiada dessa primeira análise do Multivac, mas era necessário. O mundo se perdia cada vez mais e era necessário provar a existência de Deus. E nada melhor que o Multivac, com suas ligações eletromagnéticas que se extendiam por todo o Cosmo para compreender a essência divina. As ondas que eram capturadas pelas cordas que formavam todo o sistema que permitia ao gigantesco computador fazer suas análises, acreditava-se, provinham diretamente da Divindade, ondas essas que explicavam toda a vida e existência do Universo.

Gillian ficara responsável por desenvolver as partes de engenharia genética do projeto, a verdadeira parte central. Com meros vinte e três anos e com uma genética apuradíssima, ele já era considerado o maior especialista da Federação (órgão político que governava o planeta) no assunto de engenharia genética. Com o maior avanço da compreensão dos cientistas acerca do tema, descobriu-se que, de fato, poucas coisas na vida humana de fato dependiam do arbítrio. Isso não só alavancou os estudos e a aplicação da eugenia, que, vale ressaltar, não incluíram campos de concentração, mas mera seleção genética e esterilizações em massa de futuros criminosos, como também eliminou a crença que ainda subsistia do Livre-Arbítrio, aproximando religiões como as critãs, que optaram por abandonar essa crença, e a islamita e levando a extinção de outras, como o judaísmo.

E eles, os catorze cientistas envolvidos, em breve iriam ligar a máquina. Jerôme Pascal, estava ressabiado. Ele trabalhara com a parte da engenharia e armazenamento de dados nos chips que simulavam o cérebro de Deus. O problema é que as características que o Multivac havia determinado para este Avatar de Deus na terra não eram as mais comuns. Ao invés do tão esperado Amor no sentido romântico, esse mechanix tinha uma frieza derivada de um Amor não humano, criado através do somatório de sentimentos primordiais (paixão, ódio, caridade, angústia, entre outros), que preenchia todo aspecto de formação do caráter. No entanto, fora-lhe dado um conhecimento além dos limites do imaginável, instalando-se um Multivac super-desenvolvido na parte do andróide especificamente construída para suportar todo esse peso.

Aliás, talvez aquele fosse o maior exemplo de andróide possível. Ainda que feito nos moldes de um ser humano, ela (afinal, havia o sexo sido previsto pelo Multivac) tinha recebido melhoramentos eletrônicos e mecânicos nunca antes aplicados a um ser humano. Ainda que ressalvassem-se algumas limitações físicas para torná-la passível de controle, ela era o melhor ser humano vivo.

Apertou-se o botão. Vazou o líquido da vida, um sangue artificialmente craido para ser doador e receptor universal. Em quatro horas ela abriu os olhos, revelando íris de um castanho ímpar, que se assemelhavam ao curioso prisma de cores presentes numa noz, e abriu um belíssimo sorriso perolado, que brilhava por entre lábios de um escarlate intenso.

Gillian, pela sala de comando, pede: "Perguntem a ela qual seria a pior coisa possível de se acontecer."

Procedimento este executado pelo doutor Ford, médico deste novo ser, bem como de toda a equipe. Ao que ela respondeu com uma voz, ainda que maviosa, fria: "Se todo o ar do mundo virasse madeira."

Ouvindo essa resposta, o doutor Crawford soltou uma gargalhada e disse: "Sabíamos que deveríamos ter feito um homem e ignorado esse computador estúpido!"

Como resposta, o doutor Gilbert, irmão mais novo de Gillian, disse, em tom sarcástico: "Bem, nesse caso, pelo menos poderíamos todos sentar nos céus..."

Estabelecida quarentena do projeto Espelho Divino.

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