domingo, 8 de novembro de 2020

Virtus non Stemma

Toda construção de moral da sociedade ocidental e também em boa parte das sociedades orientais passa não pelo que podemos fazer, mas pelo que não devemos fazer, dentro da nossa infinita potência, restrita pelo pouco tempo de vida.

É que nem todo homem é capaz de realmente viver pelo que prega ou acredita.

De nada adianta viver sob uma égide de falsa virtude, tirada a partir de discursos e histórias de datas trocadas, de contextos invertidos.
De nada adianta viver odiando a liberdade dos caídos, tendo entregado por medo a própria a uma falácia autoimposta. 
De nada adianta viver reclamando do drama dos outros, e fazer disso combustível para fazer a própria vida um drama ainda pior. 
De nada adianta viver em amargura, em negação, em frustração, em ciúme, em necessidade de controle, em necessidade última de manter-se sob o topo da narrativa, em necessidade de ter que ser o meio e o fim das liberdades individuais dos próximos, projetando a própria insatisfação, insegurança e frustração nos outros, acusando-os logo em seguida de fazê-lo.

Os atos falhos, pouco a pouco, vão aparecendo.

Não existe mérito em críticas que não conseguimos dar exemplo, pois tornam-se tão somente confabulações e conjecturas, ou forma de viver através de outros. 
Valores são perenes, ou não são valores. 
Ou eles são seguidos, ou são uma brincadeira de mau gosto. 
Ou as pessoas são objetos do próprio desfrute e sustento, ou elas precisam ser respeitadas e amadas. 
Não existem meios termos.

A virtude começa em acordar cedo, e arrumar a cama, sempre; não às vezes.
A virtude é o que separa o sempre do às vezes. 
A virtude começa com disciplina; é a primeira vitória sobre a preguiça e a fuga, que é o fim de toda virtude, antes mesmo de ter começado; sem ela, não é possível virtude alguma.

A virtude passa por fazer por onde.
A virtude passa por cumprir com o que diz.
A virtude passa por viver pelo que diz.
A virtude passa por falar corretamente; e ouvir corretamente.
A virtude passa por ser capaz de consertar o que diz e o que faz.
A virtude passa por ser capaz de pedir sinceras desculpas quando se faz merda.
A virtude passa por se lembrar, não ser lembrado.
A virtude passa por se restringir, não se liberar.
A virtude passa por ser livre, até para fazer menos.
A virtude passa por ser gentil, humilde e amável, mesmo podendo não ser; não porque o outro merece, mas porque assim se decidiu viver.
A virtude passa por perdoar, pois não há nenhuma razão para fazê-lo, e mesmo assim, se faz.
A virtude passa por ver a história como ela é, independentemente de ser vantajosa a nós, e não como uma ferramenta de controle.
A virtude passa por ver a verdade como uma tentativa, dentre muitas possíveis, de visão, turvada por uma lente.
A virtude passa por ver a realidade como uma construção coletiva onde nenhum tijolo é menos valioso, por mais fora do lugar que esteja.
A virtude passa por ver a comunidade como um organismo vivo, que precisa de cuidados, que pode crescer e melhorar; não um instrumento de justificativa dos nossos problemas, de alienação coletiva e de guarda-chuva contra nossa própria dissonância cognitiva.
A virtude passa por se dedicar à perfeição do que quer que se faça desde o momento em que se acorda, não apenas duas ou três coisas que sirvam de meio de deflexão.

E a virtude termina no legado que deixamos.
Pois as conversas serão esquecidas, os ensinamentos ficarão. 
As batalhas serão esquecidas, as conquistas ficarão.
As dores serão esquecidas, as músicas ficarão. 
Os prazeres serão esquecidos, a felicidade ficará.

Nós temos todo o poder do universo na palma de uma mão, e duas mãos. 
Não será possível fazer tudo. Será preciso escolher.
E de nada adianta viver uma vida que não é sua. 
Eu não serei um velho amargurado e frustrado, esperando para morrer sozinho.

Numquam cesseris nec umquam succubueris

terça-feira, 29 de setembro de 2020

 A poor carpenter blames his tools.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Air & Lava

Há em mim um frio 
Das águas e terras que são a sustentação do mundo
Uma serenidade tempestiva em direção ao fim
Um copo, sempre cheio de presença, e feito de vazio

Há em ti um calor
Do fogo e das ventanias que moldam a forma da vida
Sempre a andar, abrindo caminhos pela paisagem, imparável
A força, alastra, inevitável, por onde passou

Há em nós um encontro
Talvez dos choques a destruição, 
espaços que se demoram, corpos que se desejam,
pensamentos que casam de pronto
Talvez a promessa da salvação
Escudos que se desarmam, armas que se juntam
Em rara ocasião
Talvez extenuados pelo tempo e destino, 
fortalecidos em espirito, em vontade, assim a vida nos fez

Ah, você, a beleza
Harmonia improvável de contraditórios,
Como mais de uma mulher vivendo numa só
Simultaneas, meiga e fatal, profunda e leve, 
engraçada e séria, sempre só, e sempre acompanhada

Ah, honestidade 
Arrancando uma promessa da felicidade
Sendo o que se é quando tem que ser
Quando a verdade, enfim, terá se feito 
substância, e o verbo, feito carne
E a carne, desfeita de suas pétalas
E assim, deitado em teu peito,
O meu poderá descansar
Água e fogo, Terra e Ar
Seriam, de repente, uma força só

para Val

quarta-feira, 24 de junho de 2020

On The Nature Of Daylight

This bitter earth
What fruit it bears
What good is love
That no one shares
But while a voice
Within me cries
I'm sure someone
May answer my call
And this bitter earth
May not be so bitter after all

sábado, 23 de maio de 2020

0100100100100000011101000110100001101001011011100110101100100000011101000110100001101001011100110010000001101101011010010110011101101000011101000010000001100010011001010010000001110100011010000110010100100000011001010110111001100100

domingo, 12 de abril de 2020

Liberdade


“Sr. Anderson, surpreso em me ver? 


Então, tem consciência da nossa ligação. Não entendo bem como aconteceu. Talvez uma parte de você inserida em mim, algo sobrescrito ou copiado. Agora é irrelevante. O que importa é que o que aconteceu teve um motivo. Eu matei você. Vi você morrer com uma certa satisfação, devo dizer. Aí, algo aconteceu, algo que eu sabia que era impossível, mas que aconteceu assim mesmo. O Senhor me destruiu, Sr. Anderson. Depois disso, eu sabia as regras, entendia o que deveria fazer, mas não fiz. Não consegui. Fui compelido a ficar...compelido a desobedecer. E agora aqui estou, por sua causa, Sr. Anderson. Por sua causa, não sou mais agente do sistema. Por sua causa, mudei, estou desconectado. Um novo homem, por assim dizer. Como você, aparentemente livre. 

Mas, como você sabe, as aparências enganam...o que me traz de volta ao motivo de estarmos aqui. Não estamos aqui porque somos livres, mas porque não somos. Não há como fugir da razão, como negar o propósito...pois, como ambos sabemos, sem propósito, não existiríamos. Foi o propósito que nos criou. O propósito nos conecta. Ele nos impele. Nos guia. Nos motiva. O propósito nos define. O propósito nos une. Nós estamos aqui por sua causa, Sr. Anderson...para tirar o que tentou tirar de nós. O propósito.”

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

O caminho autoritário

Quais são as condições de mudança para o paradigma do país?

Considerando planos passados de mudança de paradigma de massas possibilitados pela aceleração das comunicações como "The Plan" (pelo Anonymous) e "Slutwalk" (pelos movimentos europeus de feminismo de massa), temos um cenário de aprisionamento cognitivo relativo a forma de lidar com questões emocionais, que tem origem por sua vez na questão da queda do nome do pai - algo que foi orquestrado lá no passado sob os moldes huxleyanos.

O que queremos para o país é uma resposta, a priori, civilizatória. Sabemos que estamos inseridos numa economia globalizada de mercado, porém sabemos dos problemas inerentes aos temas capitalistas presentes no mundo inteiro, dos quais nem os melhores cenários de IDH escapam, embora possuam pontuação muito melhor neste jogo.

Da esfera civilizacional, é necessário repensar no longo prazo que direção tomamos enquanto 'seres humanos (etno-identificados/centrados) com um projeto mutuamente subscrito de coerência social e comunidade', ou chame isto de projeto nacional. É clara já a necessidade do pensamento original, não por rejeitar a adoção de qualquer outro, porém do reconhecimento de que a falha da adoção advém da imposição achatante de um paradigma artificialmente desenhado com entendimento falho do cerne étnico, e de tendências totalitárias que sucinta a questão.

Qualquer sistema desenhado necessita prever seus tropeços e prover meios para se desenvolver a fim de acomodar aqueles que exclui. Toda e qualquer saída autoritária exclui esta possibilidade, seja ela mais semelhante à proposta comunista ou fascista, no sentido testemunhado pela história. A razão simples sendo de que o consenso é imposto, e não construído - e mesmo na democracia representativa, o problema persiste, pois o consenso é construído entre minorias (a tal da classe política e seus parceiros íntimos) e então imposto a maiorias. Tem que ser possível criar um meio de comunicação político eficiente a ponto de superar os entraves da representatividade ou até mesmo superá-la. Sendo assim um dos objetivos deste projeto é a superação total ou parcial da ideia de representatividade, seja para um tipo de democracia direta ou de anarquismo.

A distância que separa sua concretização é enorme. O primeiro obstáculo é o problema educacional. Não seria difícil implantar um sistema de democracia direta mediado pelas novas tecnologias móveis, especialmente com a popularização de mecanismos de reconhecimento facial e biométricos (impressão digital) em aparelhos celulares novos. Um aplicativo de consulta bem construído e boa gestão informacional poderia dar conta do recado. A questão é: qual será a qualidade do feedback e do input que o cidadão médio seria capaz de fornecer ao sistema? Para um projeto nos moldes do Jenova, as discussões seriam intermináveis no Brasil dadas as condições de educação atuais. Num nível sub-ótimo de desenvolvimento cognitivo, é impossível estabelecer consenso pois há limites de confiança estabelecidos por critérios do sistema massificado. Toda sociedade é contaminada pelo problema do alto risco, principalmente nas metrópoles (onde o laço social é de natureza mais racional que no campo, onde ainda persiste uma raiz comunitária, no sentido sociológico).

Portanto a primeira baliza a ser realizada é na área da escolaridade em si no Brasil - não necessariamente na educação como um todo. As matérias necessárias para conhecimento humano não são nenhuma novidade para o policy maker, os padrões mundiais já estão estabelecidos há muito tempo, mesmo para a formação histórica atual diferenciada - pouco há que se inovar, senão no arranjo e na seleção de informações. O pulo do gato está em como estabelecer um sistema contínuo de elevação global de média cognitiva, isto é, que perpetue o incremento geracional dos ganhos educacionais. Uma saída, experimentada pela Coreia do sul, é implementação de um espírito de competitividade esportiva: seria necessário ler o conjunto da obra cultural brasileiro e a partir disto implementar um sistema de competição e recompensas por qualidade de pensamento in e out of the box. Não bastaria ensinar as bases da formação de conceito e consenso, o combate a falácias e principalmente autodefesa contra vieses cognitivos, seria necessário construir um sistema que gere confiável e consistentemente resultados e os sustente crescendo no longo prazo. Também não seria suficiente testar os alunos em olimpíadas relativas a matérias escolares per se, especialmente se essas se encerram em bolhas alienantes, é absolutamente imperativo um estímulo ao pensamento fora da caixa e recompensas fortes pela inovação.

Absolutamente importante, mais do que nunca, é a abordagem dos temas emocionais, das inteligências ditas de origem emocional ou intuitivas, coisa que a escola jamais propriamente integrou em seus currículos de forma compreensiva. Não se trata de apenas estudar friamente esses fenômenos como se eles não fossem partes vivas de nós, ou como se eles fossem a parte mais importante de nós e vivêssemos sob seu imperativo. Trata-se de uma exploração consciente em busca de um refinamento e amadurecimento emocional, e que verdadeiramente liberte o indivíduo de suas inseguranças e travas de crenças. Não é possível haver mais de um século de ciência que estude isto e nada ter sido integrado com efeito na sala de aula. Nem os professores tem ciência de seus problemas emocionais e os perpetuam nos alunos fazendo chantagens emocionais baratas e outras mesquinharias, que dirá os alunos terão a chance de abrir a visão para, no decorrer da vida, enxergar e amadurecer sobre os seus próprios. Do contrário, invés de debater de fato, eles simplesmente projetarão seus problemas nos outros, especialmente os que os antagonizarem ideologicamente.

Em tempos aonde a reposta para qualquer pergunta praticamente pode ser obtida com poucos segundos em rápidos toques numa tela de celular - objeto que qualquer estudante possui - é óbvio que não faz mais sentido ficar decorando conhecimentos abstratos e de formulação dogmática sem aplicação na vida real, de modo alienante como tem sido feito desde as raízes militarísticas prussianas das escolas de massa. É preciso saber investigar, pesquisar, pensar, julgar; não saber a informação já não faz tanta diferença, é preciso saber que informação é mais importante, como verificar se ela é verdadeira, e como chegar nela, se aprofundar nela, testá-la e estressá-la. Acima de tudo, libertar a mente do conhecimento, pois este não passa de uma ferramenta. É preciso saber quando, como, e porquê usá-lo. O que temos, entretanto, é um conjunto de bolhas de conhecimento que fazem dos seus habitantes, praticamente escravos; há alguns que ainda vivem para o conhecimento, e não Dele - entretanto a maioria ainda o vê como uma vaca leiteira.

Uma vez que fosse consertado o problema educacional, seria realmente proveitoso ao governo a inclusão cada vez maior e participação mais direta popular. Provavelmente a criação de consenso entre conselhos ficaria até mais estimulada, sem necessariamente essa narrativa pífia e insossa da luta eterna que a esquerda se enquadra - e na qual a direita surfa hoje, embora mais cética, mas ainda assim motivada por um simbolismo verdadeiro de quem passou relegado por anos a uma oposição silenciosa.

E esta é na minha opinião a razão pela qual muitas nações grandes optam pela saída autoritária, totalitária - a necessidade de acelerar esse processo a qualquer custo. O totalitarismo é um atalho para o ordenamento nacional. Mas ele não vem sem custos, e mesmo que demorem, eles eventualmente aparecem.

A confiança no autoritário é zero, senão condicionada a fatores de obrigação. O autoritário não pode ser confiado, pois não pode se admitir que ele leve sempre em consideração o espaço do outro, ou seja, qualquer um sempre está um pé atrás de ser invadido ou extorquido por ele. Veja a guerra de narrativas midiáticas que se forma em volta de qualquer regime (Venezuela, China, Coréia do Norte). Não fosse o poder de mercado e bélico da China, seu peso político internacional seria obviamente insubstancial; a Coréia do Norte, por sua vez, vive de chantagens nucleares.

A criatividade sob regimes autoritários cai drasticamente, pois não se pode conviver com a diferença ao projeto, e ela é vista como nociva. O projeto estabelece círculos de hegemonia e cerceia o resto. Para se ser criativo e pensar fora da caixa, é preciso que não haja caixa. O custo de homogeneizar o pensamento é justamente a ausência da heterodoxia, que às vezes é a única coisa que pode fazer inovação; e embora saibamos que o pensamento homogêneo corta custos e caminhos organizacionais, no longo prazo vem a conta: a castração inovativa. A China não vai conseguir continuar roubando propriedade intelectual dos outros por muito tempo, pois vai chegar na ponta do paradigma tecnológico, como já está em inúmeras áreas; e a partir daí só será possível avançar inovando.

Um projeto nacional não deve promover uma hegemonia ao custo de esmagar as diferenças, porém criar uma coluna vertebral cultural que sirva de interface verdadeira para as diferenças e as una num norte comum. Não se trata de homogeneizar o pensamento; justamente o contrário, se trata de aproveitar as diferenças e sua potência criativa, porém de modo organizado e estratégico. A homogeneidade é um atalho para a ordem, mas não uma verdadeira solução para a falta dela. A sociedade que pula estes degraus em sua escala evolutiva haverá de tropeçar e ter de reaprender essas lições deixadas para trás. O atalho exclui da jornada o conhecimento do caminho.

Isso implica também numa consequência nefasta para o desenho do sistema em si, que como anteriormente dito, necessita prever seus tropeços e prover meios para se desenvolver a fim de acomodar aqueles que exclui, e no caso autoritário, invés disso, elimina os excluídos como se esses fossem os problemas, e não os sintomas destes. A capacidade de resolução de problemas fica duplamente prejudicada.

Não é nenhuma coincidência que democracias de baixo nível energético (no sentido do nível participativo) e educacional (no sentido da qualidade de participação) vez ou outra proliferem cenários autoritários, seja de esquerda ou de direita. No Brasil até hoje há partidos que adoram publicamente Stalin, Lenin, Trotsky e outras figuras bizarras que matavam quando estavam com vontade, e nem comentarei Bolsonaro e seu projeto-de-goebbels-ministro, bem como os inúmeros defensores da ditadura militar no país. O vácuo da politização é o terreno fértil aonde nascem essas aberrações, porque justamente a saída autoritária parece a mais fácil, e a única possível para a maioria da população, de tempos em tempos - visto que não há participação e tampouco senso de responsabilização individual pelo fazer político instalado no cerne da cultura.

É na interface geracional que se produz conhecimento e cultura, e a educação como termo de massa é o nome que se dá ao conjunto de fenômenos de transposição em que ocorre essa interface. A escola é um lugar institucional dessa troca entre gerações, embora fora de uma institucionalidade a família também seja, o trabalho, a mídia, a religião etc. Não é possível qualquer projeto de nação que não trate como absolutamente central este problema. Não adianta reformar tributos, administração pública, previdência, sistema eleitoral, nada. Podemos mudar as regras do jogo, certamente, para melhor; a vida tem muito para melhorar nesse país apenas resolvendo entraves burocráticos balzaquianos. Mas o jogo ainda será jogado pelos mesmos jogadores: nós, que somos irrelevantes para o caminho autoritário.

domingo, 12 de janeiro de 2020

A arte de prever o futuro

A ficção, especialmente a científica, e mais ainda as mais distópicas ou extremas, são um palpite educado. São previsões, baseadas em lógica e fatos, mas principalmente em intuição, e um convite à reflexão desses aspectos. As distopias cyberpunk são minhas favoritas, por tentar - e muitas vezes, conseguir - prever os acidentes de trânsito para onde se dirigem nossa cultura e sociedade de hoje. Exacerbando um aspecto do presente em projeção ao futuro, consegue-se fazer uma crítica do presente usando uma versão mais latente de aspectos que talvez não recebam a atenção devida, com uma lente futurista e interessante.

Toda ficção científica tende a explorar os limites éticos e conceituais de uma tecnologia. Toda tecnologia tem implicações humanas, mas também causas muito humanas - não corremos atrás de projetos de automação à toa, por exemplo; fazemos por querermos mais produtividade, mais conforto, e mais alcance. E isto não vem sem consequências. Trabalhadores humanos podem produzir peças erradas a uma taxa baixa individual, mas quando uma fábrica totalmente automatizada gera peças em defeito, é um lote inteiro errado geralmente. Mesmo nações ultra tecnológicas e de economia de alta eficiência como o Japão até hoje jamais abandonaram o controle de qualidade humano bem treinado.

De certo modo, a ficção científica e seus derivados não são um gênero e subgêneros propriamente, no sentido original da palavra. Mais coerente seria classificá-los como setting, ou ambientação, ou algo assim. Não é bem o que acontece na narrativa o que define a ficção - é onde, porquê, e quando. É um robô que se rebela, é uma tecnologia que faz upload da consciência humana, é uma nova arma, e as consequências perigosas de um novo desdobramento científico do qual não se conhece plenamente as possibilidades. Desta lacuna de conhecimento, abre-se inclusive espaço para gêneros de terror, para além da ação e aventura que podem dar esses desdobramentos.

Existe uma arte inteiramente nisso: encontrar o setting adequado. Encontrar as questões certas, as perguntas a serem feitas com esse ambiente criado. E muitas vezes, em prever o futuro, querendo ou não.

Como muitas obras, Neuromancer (W. Gibson) tratam de um futuro e de tecnologias que hoje soam ridiculamente obsoletas, porém em várias questões ele acerta. As que mais são relevantes: as questões geopolítica e social. Gibson coloca nações como Brasil e Índia na vanguarda, apostando que dessas nações despontaria a essência do cyberpunk - intuitivamente ou não. Uma mistura danada de tecnologias obsoletas e novas, típicas de países incapazes economicamente de se manter na vanguarda tecnológica - e disso toda sorte de gambiarras e procedimentos técnicos adaptativos adjunta. O cyberpunk ainda posa com questões sobre segurança e educação - o lema "high-tech, low-life" e o tema do shadowrun - as corridas noturnas em que rivalizam forças de segurança privadas de megacorporações com piratas tecnológicos do submundo.

A "arte de prever o futuro" seria um título interessante, porém equivocado, para uma obra sobre o tema. Equivocado porém não irrelevante; não se trata bem de prever o futuro, esta parte especulativa é apenas uma parte do ambiente. Um futuro desenhado completamente desconexo do presente seria desinteressante e insosso. Se trata de quais questões de hoje ainda estarão presentes no futuro, e com que intensidade. Se trata de porque ainda não teremos conseguido resolvê-las, mesmo com o avanço deste futuro. Se trata de tentar dizer porque o que vai mudar vai mudar, e porque o que não vai mudar não vai mudar. E todas as razões destas questões são profundamente humanas.

A arte de prever o futuro está portanto no poder transcendental da fabricação de cenários que reformulam questões do presente.