domingo, 12 de janeiro de 2020

A arte de prever o futuro

A ficção, especialmente a científica, e mais ainda as mais distópicas ou extremas, são um palpite educado. São previsões, baseadas em lógica e fatos, mas principalmente em intuição, e um convite à reflexão desses aspectos. As distopias cyberpunk são minhas favoritas, por tentar - e muitas vezes, conseguir - prever os acidentes de trânsito para onde se dirigem nossa cultura e sociedade de hoje. Exacerbando um aspecto do presente em projeção ao futuro, consegue-se fazer uma crítica do presente usando uma versão mais latente de aspectos que talvez não recebam a atenção devida, com uma lente futurista e interessante.

Toda ficção científica tende a explorar os limites éticos e conceituais de uma tecnologia. Toda tecnologia tem implicações humanas, mas também causas muito humanas - não corremos atrás de projetos de automação à toa, por exemplo; fazemos por querermos mais produtividade, mais conforto, e mais alcance. E isto não vem sem consequências. Trabalhadores humanos podem produzir peças erradas a uma taxa baixa individual, mas quando uma fábrica totalmente automatizada gera peças em defeito, é um lote inteiro errado geralmente. Mesmo nações ultra tecnológicas e de economia de alta eficiência como o Japão até hoje jamais abandonaram o controle de qualidade humano bem treinado.

De certo modo, a ficção científica e seus derivados não são um gênero e subgêneros propriamente, no sentido original da palavra. Mais coerente seria classificá-los como setting, ou ambientação, ou algo assim. Não é bem o que acontece na narrativa o que define a ficção - é onde, porquê, e quando. É um robô que se rebela, é uma tecnologia que faz upload da consciência humana, é uma nova arma, e as consequências perigosas de um novo desdobramento científico do qual não se conhece plenamente as possibilidades. Desta lacuna de conhecimento, abre-se inclusive espaço para gêneros de terror, para além da ação e aventura que podem dar esses desdobramentos.

Existe uma arte inteiramente nisso: encontrar o setting adequado. Encontrar as questões certas, as perguntas a serem feitas com esse ambiente criado. E muitas vezes, em prever o futuro, querendo ou não.

Como muitas obras, Neuromancer (W. Gibson) tratam de um futuro e de tecnologias que hoje soam ridiculamente obsoletas, porém em várias questões ele acerta. As que mais são relevantes: as questões geopolítica e social. Gibson coloca nações como Brasil e Índia na vanguarda, apostando que dessas nações despontaria a essência do cyberpunk - intuitivamente ou não. Uma mistura danada de tecnologias obsoletas e novas, típicas de países incapazes economicamente de se manter na vanguarda tecnológica - e disso toda sorte de gambiarras e procedimentos técnicos adaptativos adjunta. O cyberpunk ainda posa com questões sobre segurança e educação - o lema "high-tech, low-life" e o tema do shadowrun - as corridas noturnas em que rivalizam forças de segurança privadas de megacorporações com piratas tecnológicos do submundo.

A "arte de prever o futuro" seria um título interessante, porém equivocado, para uma obra sobre o tema. Equivocado porém não irrelevante; não se trata bem de prever o futuro, esta parte especulativa é apenas uma parte do ambiente. Um futuro desenhado completamente desconexo do presente seria desinteressante e insosso. Se trata de quais questões de hoje ainda estarão presentes no futuro, e com que intensidade. Se trata de porque ainda não teremos conseguido resolvê-las, mesmo com o avanço deste futuro. Se trata de tentar dizer porque o que vai mudar vai mudar, e porque o que não vai mudar não vai mudar. E todas as razões destas questões são profundamente humanas.

A arte de prever o futuro está portanto no poder transcendental da fabricação de cenários que reformulam questões do presente.