quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Advaita

Polarização é um nome meio ruim para um problema cognitivo do ser humano. O nome polarização vem de uma percepção que temos dos efeitos de um fenômeno inerente à mente e sua forma vulgar (por assim dizer), da qual caso não se tome consciência, inúmeras atrocidades são causadas sob belas bandeiras e desculpas.

É o fenômeno da dissonância cognitiva, que é o desconforto causado pelo confrontamento de uma crença do sistema de crenças de um sujeito. O desconforto causado nesse sujeito é proporcional ao tamanho da contradição exposta e à proximidade do núcleo do sistema de crença.

Se o custo cognitivo da mudança é grande demais, em geral o sujeito cria um viés cognitivo (resumindo, entorta o pensamento, produz autoengano) ao invés de enfrentar o desconforto e mudar o sistema de crenças. A gente tende a adiar essa decisão até que ela seja inadiável.

Ontem mesmo a Tabata Amaral saiu no Roda Viva desconstruindo as mentiras que o PDT malandramente soltou contra ela, principalmente a sobre ter fechado a questão, porque o problema é que uma vez que o texto mudou conforme as principais expectativas do bloco de oposição teria que reanalisar o caso. O PDT finge que essa informação não existe.

Aliás fiquei pensando de novo como a esquerda taca sal na grama, pois a Kátia Abreu também votou a favor do texto revisto no senado e absolutamente nada aconteceu com ela. Aí o Lupi hoje mesmo já soltou que a Tábata "tem que admitir que está indo para a direita". Isso é igual chamar o Kim Kataguiri de comunista, quando o cara claramente é do campo do conservadorismo político, só porque ele critica o presidente.

Isso é, são ataques dentro do mesmo campo. Não é uma real polarização, não é como chamar o Freixo de comunista querendo dizer que ele manda mal por subscrever às idéias de esquerda. É só uma forma de justificar a própria preguiça mental, por isso eu acho o nome meio ruim, meio que esconde o problema. Não é como se o problema fosse realmente Ser diferente, e afastar-se em consequência.

É preciso que se tenha uma mentalidade de upgrade constante, bem como disposição e determinação inabalável para seguir se autoaperfeiçoando, pois no fundo todos nós queremos estar certos e gozando do conforto dessa segurança, mesmo que ela seja falsa. É fácil cair na armadilha do fácil invés do certo, principalmente quando se trata do nosso próprio sistema de crenças, daquilo que está "dentro," e que portanto não é tão fácil de ver. Daquilo que é o que se usa para distinguir, justamente, o fácil do certo.

O que se convencionou chamar de polarização é um epifenômeno de uma conjuntura tridimensional: uma componente educacional completamente vácua em estudo da consciência, associado a uma despolitização generalizada (senão a vulgaridade e a superficialidade) e a uma formação histórica de hipercomunicação e hiperconexão, o que produz um debate muito intenso porém completamente superficializado, errático e inconsertável em muitos casos.

O debate político felizmente anda melhorando. Se teve uma vantagem na eleição do messias, é que o debate teve que ser melhorado, pois ficou escancarado que a esquerda já não entendia mais porra nenhuma do cenário político. Certos idealismos babacas foram cada vez ficando mais pra escanteio como nunca antes. A verdade é que nunca houve um tempo onde se pôde falar mais livremente e abertamente de política do que agora, embora pudesse parecer no começo da internet. Nós é que demoramos um tempo para entender a internet e suas peculiaridades (como sua anonimidade e impessoalidade). Isso só foi possível entre conhecidos, em situações onde sabíamos mais ou menos em que ovos pisávamos. Os problemas sempre estiveram lá, na educação. Na ponta, na estrutura, nos espaços públicos, o nível foi sempre mais ou menos o mesmo, e infelizmente enquanto não tiver uma revolução educacional vai continuar devagar. Pelo menos a internet forçou e acelerou certas disputas de ideias, e isso as amadureceu.

Por mais que o Ciro Gomes tenha um problema de raiva e cometa certos delitos morais e estratégico-políticos¹ em defesa de uma honra política que dificilmente se veria ameaçada, ele tem grande mérito em tentar trazer algo infinitamente menos superficial, demagógico e maniqueísta que o PT havia trazido antes, coisa que a Marina Silva também apresentou nas eleições de 2010, e talvez paulatinamente isso venha elevando o nível da concorrência política. O PDT foi o único partido que chegou com projeto pronto de governo para apresentar nas eleições que trazia propostas claras e bem definidas para reformas como a da previdência, tributária e fiscal. E na câmara eles defenderam o projeto deles até o final. O resto da esquerda sequer coçou a bunda a respeito - outros partidos que chegaram perto foram de centro. Goste você ou não do Ciro e suas ideias, concorrência é bom.

¹ Como chamar o Leonardo Boff de "um merda", sendo este um senhor de 80 anos, ou dar um safanão em um repórter e mandar ele ir para a casa do Romero Jucá, como se isso não fosse exatamente cair na armadilha que o mesmo Jucá estaria querendo que ele caísse ao enviar o reporter lá pra provocar ele.

Por mais que o Kim Kataguiri tenha sido um youtuber meio bunda e o MBL (com o próprio Kim admitindo) tenha contribuído para o debate ser polarizado, ele tem feito um trabalho na câmara muito bom. É claro que ele defende o viés ideológico dele, e dentro disso tem somente um tanto que se possa fazer, analisar por uma régua de esquerda seria nonsense. Mas o que mais tem é vídeo dele dando surra em deputado que não lê regimento, não lê o que assina, não estuda os projetos de lei que apoia e nem os que critica (estou falando da bosta do PSOL e PT, que salva 2 3 deputados cada), e isso também é concorrência e é muito bem-vindo.

A polarização verdadeira é saudável. É testando e estressando as idéias para ver se elas sobrevivem ao tempo e a  prática que evoluímos, e sem essa possibilidade, deixamos de ser seres conscientes e passamos a escravos de ideários vulgares.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

A diferença entre se calar e estar em silêncio

A verdade é autoevidente.

Uma vez vista, não pode ser desvista, somente subposta a uma ilusão de próprio cunho ou subscrição. Sendo assim nada é possível ser feito se a vontade do indivíduo criador da ilusão não permitir.

Uma vez que ainda não foi vista, a verdade só pode ser conjecturada no imaginário/simbólico, aguardando sua realização. Sendo assim nada é possível ser feito a não ser permanecer em estado de humilde isenção e reconhecimento da própria ignorância, do contrário se cai numa ilusão de possuir um conhecimento que não condiz com a realidade - ou seja, ilusão autoimposta como no primeiro caso.

Se dizer a verdade adiantasse alguma coisa, já todos estariam iluminados faz tempo. Onde falta vontade de ver, não basta nem mostrar; quanto mais falar a verdade. É preciso que se mude a vontade das pessoas, e isso somente elas podem fazer por si mesmas.

O máximo que é possível fazer é viver no máximo de si, dentro da verdade, da felicidade e da realização. E elas talvez, aí, queiram o que você tem.

Cobrar discursos e "posicionamentos" é mais uma das bobagens vulgares advindas da armadilha cognitiva instalada na base precária da educação que temos.

Isto força a significar coisas das quais não se tem a menor ideia de sua substância, propagando ainda mais ignorância; quando do contrário, no silêncio hesitoso, no estudo e na meditação aprofundados sobre o assunto, poderia-se adquirir bases decentes para tomada de decisões e formar conceitos com maior temperança.

Mais ainda, o posicionamento e o discurso forçado são apostas imbecis. Por sua natureza, eles estão sendo baseados em algum senso de confiança no outro, seja este outro o mito popular, a academia, a mídia ou outros lugares abstratos onde há confiança emocional, como a família.

Eles são uma aposta de que é possível confiar verdadeiramente nesta(s) fonte(s), de que o outro está certo e de que não é preciso verificar a veracidade do que dizem. O que pode ser razoável no caso de instituições cujo rigor é sabido, como a academia. Mas ainda assim, a verdade não passa de uma tentativa. A ciência pode até mesmo ser a melhor tentativa que temos, mas não passa, ainda, de uma tentativa. Pela mesma razão, esta encontra-se em perpétua evolução.

Isto para não mencionar o fato de que, uma coisa é entender o conceito científico a fundo e suas implicações, outra muito diferente é ir ler a página dos Fatos Curiosos e achar que entende.

A armadilha cognitiva está principalmente no fato de que o mero questionar destes símbolos é tido como um absurdo e um ultraje para aqueles que subscrevem às suas apostas. O que se segue disso é a falsa dicotomia imediata - ou se aceita por completo ou é completamente contra.

Um exemplo simplista e grosseiro com a questão das vacinas. É preciso evidentemente ter rigor quanto à qualidade das vacinas distribuídas nos postos de saúde, especialmente as vindas do exterior, onde se foge o controle de qualidade doméstico. Alguém que questione isso pode ao mesmo tempo ser combatido por defensores das vacinas que vêem um ataque à ciência que inexiste, quanto ser combatido por defensores do direito a viver sem vacina, pelo mesmo motivo - enxergar um ataque a si que inexiste.

A atitude de uma aposta não é a atitude de um saber. A postura correta é sempre de saber se é verdade, nunca de acreditar que é verdade. Questionar é no mínimo ser educado.

O saber científico sempre está em um suspenso; embora haja conceitos verificáveis e sólidos, pode ser que a fundamentação teórica tenha suas bases  transformadas em inteiramente diferentes, numa descoberta que leve a uma próxima revolução científica. O universo pode ser uma simulação, um holograma, ter um monte de dimensões das quais não fazemos ideia por não percebermos de imediato, e sei lá o que mais. Alguns destes fatos podem pôr à tona inúmeros conceitos anteriores sobre o que são as coisas e porque o são. Dito isso, há uma diferença entre o conceito de verdade científica e verdade na metafísica.

Além disso, ou as instituições científicas seguem seus preceitos, ou não. Se sim, então as verdades científicas não carecem de ser defendidas permanentemente, uma vez que já o foram, a rigor. Ou se sabe, ou não se sabe. Quem não sabe, é factualmente burro. Não se fala sobre a água ser molhada; tampouco deve receber atenção o fato do burro ser burro. Explica-se uma vez educadamente, por cortesia, e olhe lá.

Cobrar posicionamento é um fenômeno típico de uma sociedade aonde a opinião importa demais, e o saber que fundamenta esta opinião, de menos. É uma tolice, tal como falar a verdade para quem não quer ouvir. Não faz diferença nenhuma, quando pouco. Quando muito (no caso dos mais jovens) produz danos psicológicos e crenças mal-fundamentadas.

A diferença entre se calar e estar em silêncio é, pelo bem da metáfora, que o segundo é seguro do que conhece e do que é ignorante, enquanto o primeiro cede a uma pressão dentro do jogo de apostas imbecis.