quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Educar para Transcender?

Jorge Sanjinés se reinventou a partir do choque advindo da crítica popular aos seus filmes. É evidente que havia aquele fetiche de que as camadas populares se vissem no cinema, havia essa necessidade de se ver representada na tela. Mas isso não evitou que alguns dissessem que, em seus filmes de denúncia, não viam nada de novo: sofriam na pele aquilo que era mostrado nas telas, diariamente - ninguém precisava lhes relembrar aquilo. Isto expõe a necessidade da transposição do caráter apenas denuncialista para o propositor, o reflexivo e uma idéia de ciclo, e aí fica a pergunta se a própria idéia de ciclo precisa ser também transcendida.

Por exemplo, existe uma condição de financiamento estatal que impede projetos culturais de saírem do papel. Há a denúncia, que deflagra uma série de outras denúncias, até que se esgota o caráter denunciativo. Durante esse processo, pode ou não surgir manifestações propositivas (além de denunciativas), por exemplo projetos de lei que consertem esse problema com os projetos culturais. Daí o projeto de lei pode ou não ser votado, e caso se concretize em lei, suas implicações na sociedade tornam-se eventualmente tema de reflexão - e num futuro, possivelmente essas reflexões venham a produzir novas denúncias.

Traçando uma ligação à condição pós-moderna, esta que enxerga ciclos cada vez menores de criação-implantação-consumo-obsolescência, há também a reflexão sobre a possibilidade de transcender a ciclicidade. O debate é fortemente necessário, pois há um grande ceticismo, presente nas obras, quanto às teorias todo-explicativas (que tem certa pretensão de tudo explicar), por exemplo a luta de classes de Marx ou o inconsciente, de Freud. E surgem cada vez mais artigos relacionando luta de classes e jogos online (com o perdão da metonímia). Vejam este exemplo: http://gamehall.uol.com.br/v10/a-luta-de-classes-ja-chegou-no-mundo-virtual/

É algo sobre o qual se escrever, especialmente em situações de alta desigualdade social, de subdesenvolvimento. Quero dizer que o fato de denunciar em si tem sido esgotado, tal como as teorias todo-explicativas - e elas contribuem para esse esgotamento quando fomentam leituras críticas de temas que não exatamente produzem desigualdades tão sensíveis - vide os temas defasados. Se os ciclos de obsolescência do mecanismo de denúncia-proposição-reflexão estão ficando cada vez menores, o que vai acontecer com a substancialidade das suas respostas?

Digo isso por que parece que os ciclos estão chegando ao fim. Estamos numa espécie iminência constante da transcendência de muitas questões que passam por essa característica de ciclicidade, especialmente sobre alguma variação do tripé ver-fazer-refletir, que é próprio da experiência de ser - não só parte de uma metodologia de ensino de vídeo-processo. O engraçado, em se falar de Cinema e Educação, é que no dia 22/10/2013, estava no II Encontro de Educadores de Cinema e Vídeo, parte da agenda da semana acadêmica. As falas finais estiveram permeadas por palavras em prol da busca pela transcendência.

A busca pela transcendência é, fatalmente, a busca pelo sublime, pela realização do Self, pela libertação das estruturas de controle do Ego, e ela está de alguma maneira, presente nas artes. Essa característica foi apontada como um dos propósitos do cinema.

O que eu digo é que na verdade ela É o cinema - ou melhor, o cinema é a melhor tentativa do homem, a mais forte de todas, de se encontrar fora do eu, encontrar-se fora de si, para que a partir desse encontro, seja capaz de transcender as sensações e o entendimento, e seja quem de fato se é - não o simulacro de si construído pela linguagem, que por mais elaborado e evoluído que seja, é tentativa, não coisa em si. Esse eu é colocado na tela, reconhecido, e aí é transcendido.

Quando uma professora antes apontara a questão da cautela que se deve ter ao lidar com a situação de condicionamento, disse depois que já reconhecia aí, no próprio exercício da produção fílmica, a idéia de transcendência. Esta professora estava falando que alguns alunos estavam fazendo filmes sobre temas denunciativos que não eram próprios da sua realidade, como a gravidez na adolescência e as drogas - estavam fazendo suas escolhas a partir não daquilo que realmente queriam porém a partir de uma expectativa, consciente ou não, de aprovação por parte do professor. Então seria necessário desfazer esse condicionamento, com grande cuidado, afim de que o aluno fosse capaz de expressar-se a partir da sua verdadeira personalidade, e não buscando uma aprovação externa.

O que é essa busca pela verdadeira personalidade senão a busca pelo próprio Self? O que é libertar-se desse ciclo de fisgar-puxar-soltar (cujas iscas são de aprovação, aceitação e outras coisas, que no fundo são o mesmo - moedas de medo) senão libertar-se do próprio Ego? A busca pela transcendentalidade é, fatalmente, a busca pela liberdade - a liberdade de ser mais.

Bom, a quantidade de coisas que a ferramenta pode comunicar (de maneira direta e principalmente indireta) é tremenda, é como comparar fibra ótica à conexão discada. Isso por que a linguagem cinematográfica (com ressalvas da generalização é claro), com toda sua fluidez e subliminaridade comunicativa dá conta muito bem de sequestrar a atenção do espectador, de puxar ele pela gola para dentro da janela e colocá-lo enfiado dentro daquele personagem a quem é associado o plano POV, por exemplo. É através dessa capacidade que acontece o fenômeno de alteridade.

Um dia desses você pode se encontrar pensando alguma coisa que você acha que é de sua autoria, mas na verdade pode não ser bem isso, por que o que proporcionou a confecção daquela idéia foi exatamente a sua experiência de ser o outro, que um filme proporcionou um dia desses e você nem percebeu - só depois, refletindo a respeito. Por isso é preciso uma constante reflexão do que é que está sendo visto na tela, e mais do que isso, é preciso que haja uma resposta.

Em se tratando de Cinema e Educação, existe o desafio de fazer filmes sobre a escola não apenas tomando-a como cenário, porém como agente personificado – isto é, em outras palavras, fazer filmes que dialoguem Com a escola. A escola tem que ser capaz de falar e criar meios para isso, e um deles é a câmera.

A educação – enquanto conjunto de fenômenos simultâneos de aprendizado e ensino – é produto das transposições entre gerações diferentes, e seus modos de ser, agir. O conhecimento e a cultura se produzem e se perpetuam nessa interface e através dessa cadeia de fenômenos incessantes. Então se for possível haver uma ideologia política subjacente ao uso e a criação dos mitos e estereótipos no cinema hollywoodiano (estereótipos como os de professor e o de aluno, por exemplo, que produzem efeitos no inconsciente) então é obrigação dos estudantes de cinema no Brasil (um país tão prejudicado em termos de educação) empreender ações que democratizem os meios de captura e entendimento desses fenômenos, e o mais importante, que respondam aos mesmos – em outras palavras, também tem que ser possível haver uma resposta sensível a essas ideologias subjacentes.

É compreensível que haja um medo do poder da ferramenta audiovisual, uma vez que a capacidade de expressão dela é abismal. Hitler, Stalin e tantos outros construíram cinematografias e influenciaram identidades e deixaram signos no inconsciente daqueles que frequentaram os filmes, em prol de agendas bastante claras, viabilizadas pela máquina estatal. O cinema constituiu fração generosa da máquina propagandista desses governos.

A escola tem que ser capaz de se expressar nesse sentido – assim como um professor não deve ser apenas um passador e o aluno um receptor, a própria escola também não deve ser apenas um receptor, se não ela se perde do seu sentido. Assim posto, o ensino do cinema se projeta como uma poderosa arma de democracia, dando aos alunos e professores essa capacidade de produzir respostas audiovisuais, e conscientizar-se da expressão - e desenvolver de fato potencialidades, para além dos tijolinhos quadradinhos de conhecimento cimentado em currículos produzidos em decisões centralizadas.

Nesse contexto é preciso dizer que sim, o cinema pode ser tudo isso, uma máquina de guerra, uma máquina de educação e de construir nações e etnias, mas ele pode ser mais - na verdade ele, tal como o homem, ele É muito mais, só não está consciente disso sempre.

Chamam de projeção o fenômeno que proporciona ao homem uma ilusória experiência de capacidade de manipular aquilo que está dentro dele a partir de fora dele. As questões mais profundas da nossa mente não estão dadas; não são manipuláveis, tampouco são claras. Então o homem, incapaz de olhar para dentro com a mesma clareza que olha pra fora, projeta. Em outros tempos esse mecanismo foi razão do fim de inúmeros relacionamentos e de tanto sofrimento - a incapacidade humana de enxergar o outro para além do Eu que há no outro - que é a projeção.

O cinema, entretanto, permite Manipular o Eu. Permite ser Outro, e aprender com a experiência de ser ele. O cinema é capaz de quebrar essa barreira entre Eu e Outro mostrando o óbvio: que ela não existe. O cinema é capaz de mostrar Aquilo que diz ou explica - e que, por tal, não pode ser explicado ou dito. O cinema mostra que a realidade é uma construção, que você é quem a cria. No fim, o Cinema, a Educação e a busca por transcender são partes inseparáveis da mesma coisa.

Os ciclos estão chegando ao fim; é hora de transcender.



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